quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Mar gelado

Num lento pestanejar, leva as mãos aos olhos sem saber muito bem onde está. A leve neblina tudo envolve e o ar gélido que percorre os mares da Terra Nova fá-lo acordar. Sente um arrepio na espinha e o terror de não ver a embarcação principal... tem um bacalhau preso à linha, e não faz a menor ideia onde se encontra.
Vento e mar, são os únicos sons num filme de terror que tarda em terminar.
Quero acordar, quero acordar, pensa. Não era um sonho… o pesadelo, esse, era bem real.
Para trás ficara a mulher e os filhos… para trás a terra pobre…
Três meses de mar já passados a vinte horas diárias de trabalho, vencido pela exaustão e um “dory” pleno de bacalhau, num mar agora zangado e ainda mais perigoso.
A embarcação de boca aberta, em madeira, constituída por três remos, bancos, forquetas, balde, mastro, verga e vela, não parecia estável… recolhe o aparelho, deita algum do bacalhau fora na tentativa de voltar a equilibrar o bote.
Olha para a pequena bússola sem saber as horas, o dia já vai alto… sabe que consegue adivinhar a posição do navio, se este ainda aí estiver.
Começa a remar como nunca remou, a força, essa, vem muito certamente da alma, do instinto de sobrevivência, certo de que baixar os braços não é opção.
A neblina acalma e um vulto de grandes dimensões surge no horizonte. Já sem força para continuar, os sentidos desligam-se, o fim está iminente.
A sensação de conforto de uma cama e lençóis, a temperatura amena de uma divisão impecavelmente limpa e alguém a lhe falar numa língua indecifrável, “estou louco”, pensou.
Mas não estava… encontrado já inconsciente, por um navio de carga russo, um segundo folego foi-lhe oferecido…
A vida, essa, é feita de pequenos milagres…

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Batalhas

Poderosa, ameaçadora e ensurdecedora, a tempestade assola a noite no seu escuro véu. Rios percorrem as ruas semi-desertas de Lisboa, mas a tudo ele parece indiferente.
Encostado à parede de um prédio antigo, coberto pela tenebrosa intempérie, um individuo sem idade, sujo e andrajoso, ajoelhado e de pés nus, grita das profundezas da alma.
- O Anticristo está a chegar, estás a chegar, a besta está… – uma falha na voz, a lágrima sobrepõe-se à chuva que lhe percorre o corpo, ao mesmo tempo que vislumbra a indiferença ou a grande repulsa de quem por ele passa – Esperem! Oiçam-me! Já vi a besta da terra… já o vi…
- O caos vai-se instalar, já vi o falso profeta – rouca e profunda como a noite, sua voz projecta-se na escuridão, perdido, seus olhos semicerram-se imediatamente, como os dum animal irritado – Armagedão, o anticristo entrará em Jerusalém e se autoproclamará Deus.
- Oiçam-me, têm de me ouvir! Aqui ninguém é inocente. – Desesperadamente insano, descontrolado, leva as mãos à barba enquanto grita no vazio – Jesus não vai regressar para salvar o Mundo, é tudo mentira.
- Vem, mata-me com as tuas palavras, desafio-te… – sem esconder a decepção, deixa-se cair de exaustão, para a custo se levantar, reprimindo um novo soluço resignado e triste – A batalha já se deu e Deus perdeu-a…
De repente, estremeceu – Pára, estou a arder, deixa-me, deixa-me, não te quero.
Sente, uma vez mais, o abandono dos sentidos, apaga-se momentaneamente para a vida. Ao acordar, sente-se calmo, em seu redor apenas a mais pura das cores. Será que está morto? Está deitado numa cama, envolto em lençóis brancos. Sente-se limpo e a roupa tem um suave odor a lavado.
Está sozinho, a mente ainda distante e a vista algo turva. Pela luminosidade do quarto poderia adivinhar o paraíso não fosse estar de mãos e pés atados, mas o inferno não é tão puro, pensou.
O rosto de um anjo surge sobre si, numa língua perdida, dá-lhe algo para tomar e contínua suavemente seu diálogo.
Que interessa afinal onde está… não há presente ou futuro, o passado a água da chuva levou…

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Os "Ecopontos" da Natureza

 
- Está uma manhã bonita, não está? – Observou Pedro, enquanto prepara a mesa para o pequeno-almoço – Nestes dias, o trabalho com o jardim compensa sempre…
Joana sorri – sim, o meu trabalho compensa sempre…
Pedro responde com um sorriso cúmplice.
O sol da manhã atravessa o pequeno jardim, ilumina-o e dá-lhe um conforto que lhes é afeito. A tradição de tomar o pequeno-almoço "fora de portas", existia desde sempre.
Os sons da natureza, qual orquestra afinada, em tons ligeiros, belos e relaxantes, é a banda sonora de um espaço verde, colorido e repleto de cheiros familiares.
Um miúdo de sorriso bem traquinas, atravessa a cozinha e corre para junto do pai. Pára, ao observar um pequeno exército de formigas a encobrir uma abelha morta.
- Pai, pai – grita com tristeza na voz.
- Jorge, como sabes, na natureza, nada se perde, tudo se transforma, como por magia, qual milagre, não há desperdícios, apenas formas de vida a gerar e sustentar outras, numa constante renovação.
Recordo-me - continua, pausa na voz, uma voz quente e jovem - Eu teria pouco mais do que a tua idade e os teus avós levaram-me a passear no campo. Na memória ficou uma bela imagem de cogumelos, quais frutos, a sair de um resto de tronco. O avô chamou-lhes parasitas necrófagos, seres que se alimentam da desgraça alheia, sem ter que lutar ou revelar grande esforço…
- Como a fábula da cigarra e da formiga?
- Exactamente como a fábula…
- Recordo-me da avó sorrir, fazer uma careta, para logo de seguida referir que a grandeza está no aproveitamento de recursos. Um tubarão que se alimenta de restos da carcaça de uma baleia já morta, assim como os microorganismos que acabam por a consumir, que aniquilam a putrefacção e acabam por representar pequenos “ecopontos” vivos da mãe natureza.
- Como quando vamos ao vidrão?
- De certa forma, sim. Não te sei dizer se os cogumelos, que se instalaram nos restos do que em tempos tinha sido uma árvore, e dela se alimentavam, seriam, ou não, comestíveis… mas independentemente disso, uma forma de vida já extinta, permitiu o surgimento de outra e a sua subsistência…
- Mas não tens pena da abelhinha?
- Se tivesse viva, teria, mas sabes, a natureza, por vezes, aos nossos olhos, até pode parecer cruel… mas todos os seres servem, por vezes mesmo sem o saber, um propósito superior, e a vida é feita disso mesmo... de pequenos milagres.
- Pai, levas-me ao campo?

domingo, 2 de outubro de 2016

"Dignidade", a última fronteira

 
 
O respeito que a dignidade nos merece, não me parece discutível e choca-me que muitos o questionem, “atropelem” e “violem”, possivelmente fruto de genes coloniais que ainda os iludem com sonhos de excelência.
É um direito natural a ferro e fogo conquistado. Únicos, autónomos e livres somos… cada um o é… inatamente o é.
Filhos da dualidade, grandeza e respeitabilidade versus insatisfação e fraqueza… teimosamente entre céu e inferno… aparentemente insignificantes perante os ideais que nos envolvem.
A balança deixou de ser obrigada a apurar sacrifícios pagãos, onde o grupo ao indivíduo se elevava ao ponto da alma deste aos deuses ser oferecida.
Escravos que não eram Homens, civilizações destruídas, minorias erradicadas…
Perversões do passado ainda ensombram um presente frágil e tímido ao que aos valores respeita. Duas vidas não são mais importantes do que uma… um milhão também não. Irrepetíveis somos, com todos os nossos defeitos e virtudes somos, filhos de um deus maior… a dignidade, mais do que uma faculdade é uma exigência de vida, nossa e dos outros.
Em família, entre colegas, amigos, conhecidos e desconhecidos, sem preferências… uma vida não é mais importante do que outra. Do mesmo modo, todos temos defeitos, virtudes, evoluindo ou regredindo diariamente e tendo sempre como lema algo muito simples:
“O que eu penso ou digo do outro, ele poderá facilmente pensar pior de mim, os meus actos desrespeitosos, não alteram o facto do outro poder tratar-me ainda pior”.
É bem verdade que, instintivamente, dúvidas subsistem e hesitamos colocar a vida de um ente querido ao mesmo nível da de um estranho… se chegaram a esta linha, deve ser mais ou menos esse o pensamento comum… mas não é disso que se trata, não há que confundir dignidade, enquanto humanos, com laços de amizade, parentesco ou amor.
Eu considero-a, à dignidade, a última fonteira, o último marco que nos falta ainda assimilar enquanto Humanos.
Bom Domingo

 

 

sábado, 1 de outubro de 2016

Este País não é para velhos

 
 
Contrastando com este belo dia de sol, o texto em presença pouca luz ou cor tem…
Reminiscências de uma antiguidade tortuosa e longínqua, essências quase perdidas de espectros do passado, fazem de nós, gerações do presente, consequências de uma evolução nem sempre pacífica, nem sempre errante, senhores de um Mundo que não é nosso.
Adultos somos, jovens fomos, idosos eventualmente seremos…
Outrora respeitáveis e respeitados em civilizações esquecidas, são, agora, pouco mais que um fardo na nossa civilização… nós o seremos ainda mais...
No que deveria ser a idade dourada, prateada, quando os rendimentos de um passado produtivo para mais não chegam, vive-se com pouca dignidade, encaixotados muitas das vezes em lares sem espaços verdes, sem os cuidados médicos necessários, sem a atenção merecida.  
Com tanto para transmitir, experiências de vida únicas, ainda de tempos sem carros num País imenso e em si fechado. Lendas e tradições perdidas de uma cultura singular. Tanto carinho e amor para dar, perdidos em salas isentas de movimento à espera do fim.
Vivem, à espera da morte, sentem-se sozinhos, com depressões que os médicos já não curam. Têm um tratamento “diferente” nos centros de saúde ou hospitais. A despesa em medicamentos é desmesurada em comparação com a parca reforma.
Nem sempre chegamos a velhos e na generalidade dos casos, será uma bênção…
Recordo com saudade a minha avó, longo cabelo branco, sempre preso a recordar uma Fräulein alemã. Recordo os olhos verde-água, muito límpidos, perfeitos e os longos Verões passados à beira-mar, ainda menino. E que boas as suas sopas eram… É claro que ansiava particularmente por um arroz doce como nunca mais comi…
Lamento profundamente, que a minha juventude me tenha afastado de um conhecimento mais profundo da sua vida. Partes do seu passado que perdi sem possibilidade de recuperar.
É muito difícil ser-se idoso em Portugal.
Angustia-me saber que merecem mais, mais carinho, mais atenção, melhores condições de vida, mas sobretudo, mais amor.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Café da Manhã

Um momento, para ser especial, não tem necessariamente de ser longo, dispendioso ou acompanhado…
Café da manhã, rito de passagem para o mundo laboral, escassos minutos de gloriosa solidão. Muito, mesmo muito, especial…

Arriscando tornar esta visão numa imagem paródica, há que imaginar este instante e enquadra-lo no vosso local habitual, pendurando, ou não, pinturas pitorescas nas paredes.
De madrugada, pouco importa “a onde”, somente o meu café e eu…

É, efectivamente, um lugar-comum e é nesse mesmo pequeno universo que me encontrava quando, pela porta, entra um miúdo, pouco mais teria que 5 anos, de nacionalidade alemã, e na posse do que fora em tempos um brinquedo. Em grande agitação grita “ Das ist Kaput”, “das ist Kaput”. Imaginei imediatamente a entrada de um segundo traquinas a correr pelo estabelecimento, igualmente em grande forma, “Não fui eu”, “não fui eu”, “não fui eu”…

Nada aconteceu. Voltei a deambular pelas letras gordas do jornal, onde se lia terem as autoridades turcas afastado dos respectivos cargos87 membros dos serviços secretos.
Nada de surpreendente ou assim tão extraordinário, em todo o caso, quando a minha mente se coloca em “fuga”, tenho alguma dificuldade em parar (risos).
Assim, imaginei os turcos a encetar contactos com Portugal, visto termos um dos melhores potenciais humanos para tal profissão… basta imaginar ou recordar muitos dos nossos vizinhos, colegas ou amigos… Temos finalmente a possibilidade de dar uso a um dos nossos melhores recursos naturais… a nossa capacidade inata de sabermos tudo o que se passa na vida dos outros, infelizmente muitas vezes sabemos tão pouco da nossa…

Mas imaginem só o titulo do Jornal:

Autoridades turcas contratam comuns cidadãos portugueses para agentes – 007 Ordem para escutar…

Uma óptima sexta-feira

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Por um momento só... por um simples momento...

Nem sempre somos quem queremos ou quem poderíamos ser. Nem sempre vamos onde queremos ou poderíamos ir. Para os que dizem que a vida tem limites, claro que os tem, somos nós que os impomos, a gravidade e a lei…
Por um único momento, gostaria de ser capaz de compreender a mente do Homem, o que nos move, o que nos faz sorrir, odiar ou amar. Por um momento só, gostaria ter a cura para a maldade humana, eliminar todas as doenças e alimentar os pobres.
Nem sempre fui o que quis ou o que poderia ser, nem sempre fui onde quis ou poderia ter ido. Para os que dizem que a vida tem limites, claro que os tem e está na altura de os ultrapassar, o racismo, preconceito, egoísmo e preguiça.
Por um simples e único momento, gostaria de ser o sol, aquecer o coração humano, fazer esquecer o ódio e ensinar o conceito metafísico do amor. Por um só momento, gostaria de ter a sapiência para ensinar ao Homem o que é a igualdade, o prazer de dar e a capacidade de sonhar sempre mais além.
Se a vida deveria ser simples, então, porque razão, constante e repetidamente a complicamos?
Ouve, sente e olha, tu és o futuro, o teu. A vida, essa, é de facto simples, curta e valiosa.